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sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

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O sofrimento perante a devastação de Gaza

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Depois de 22 dias de bombardeamentos, Gaza luta para se reerguer dos escombros, atónita perante a devastação causada pela mais violenta guerra dos últimos 40 anos. A VISÃO entrou no território. Leia a reportagem e veja o VÍDEO

Os homens lavam os pés com a água racionada. São dezenas e têm apenas um pequeno garrafão. Estendem dois tapetes coloridos debaixo de uma tenda improvisada e iniciam as rezas do meio-dia. Um rapaz chora sempre que toca com a testa no chão, louvando o profeta. À sua frente, até onde a vista alcança, há apenas escombros. As 29 casas do clã Samouni, de Zeitun, uma pequena vila a sul da cidade de Gaza, foram todas destruídas, a 5 de Janeiro, durante a guerra com Israel. Trinta e três pessoas desta família morreram num só dia.

O cheiro a morte ainda paira no ar. Faraj Samouni, 22 anos, mostra a casa da família em ruínas. «Mataram os nossos animais, destruíram as plantações, roubaram tudo o que era bonito na nossa vida… Porquê? Porquê?»

Aqui, ao contrário do que sucedeu noutras zonas da Faixa de Gaza, não foram as bombas lançadas pela aviação israelita que semearam a morte. Foram as forças terrestres que, durante 24 horas, espalharam o pânico no seio desta comunidade de agricultores. «Chegaram em tanques e começaram por deitar fogo à casa do meu tio. Ainda tentámos ajudar, mas eles disparavam sobre quem se aproximava. Eu tive sorte, pediram-me a identificação e só me mandaram tirar a roupa e ficar junto de uma oliveira, sem me mexer.» Eram 6 da manhã e Faraj tremia – de frio e de pânico. Foi uma testemunha forçada da onda de destruição que arrasava tudo à sua volta.

Uma hora depois, mandaram-no regressar a casa e fechar-se num quarto. Assim fez. Minutos depois, os soldados entravam pelas traseiras. «Estávamos fechados, como eles mandaram, às escuras, numa pequena sala: eu, o meu pai, a minha mãe e os meus cinco irmãos pequenos, que não paravam de chorar. Os soldados gritavam muito, pediram para o chefe da casa ir à rua. O meu pai levantou-se e abriu a porta, de mãos no ar. Mataram-no logo, sem uma pergunta…»

A família gritava, desesperada, no interior da sala, enquanto os militares continuavam a disparar. Faraj suplicava-lhes: «Por favor, parem, estão crianças aqui dentro!» A mãe já tinha sido atingida, tal como Faraj e dois dos seus irmãos. «Então, eles entraram na sala, apontando luzes às nossas caras e baixaram as armas. Disseram para não sairmos dali. Ouvi-os revolver a casa toda... levaram-nos o dinheiro, 2 mil dólares que o meu pai tinha acabado de receber, pela venda das colheitas. Agarraram num bidão que tínhamos na cozinha e espalharam gasolina pelas outras divisões. Depois deitaram fogo a tudo.»

O odor do martírio

As marcas das balas e do sangue ainda são visíveis na sala onde Faraj procurou abrigo com a família. É a única divisão que continua de pé. O resto da casa está em ruínas. O que o fogo não destruiu foi, depois, deitado abaixo com explosivos. Entra-se a custo, num espaço que iria servir de quarto a Faraj e à sua noiva – casariam no próximo mês –, saltando por cima de bocados de tijolos, mobílias, roupas, brinquedos, pedaços de vidas desfeitas. É estranho ver um megafone, semelhante aos que se erguem no topo das mesquitas, para chamar os fiéis para as rezas. «É da mesquita do outro lado da rua. Veio aqui parar com a força das explosões.»

Algumas horas mais tarde, os militares regressaram a casa de Faraj. «Mandaram-nos sair, saltar por cima do corpo do meu pai, e seguir para a estrada principal. Perguntei se podíamos ir para Gaza, porque estávamos feridos, mas disseram que não. Tínhamos de ir para Netzarim. Mas lá não há hospital…» Faraj correu o mais depressa que podia, levando ao colo a mãe, que se esvaía em sangue. O irmão, de 10 anos, Kanan, carregava o irmão Fadi, de 3, que fora atingido na cabeça. A um quilómetro de distância, os tios e primos chamaram-nos para dentro da casa de uns vizinhos. Foi ali que se abrigaram mais de uma centena de pessoas, esperando que os soldados acabassem de destruir todas as suas propriedades.

«Ligámos vezes sem conta para o hospital, a pedir que enviassem ambulâncias… havia gente muito mal. Mas eles não podiam aproximar-se, os israelitas não deixavam. O meu irmão acabou por morrer», diz, cobrindo com as mãos o rosto emocionado. Uma prima sua entrou em trabalho de parto, à noite, e teve a bebé no meio daquela gente toda. «Tivemos de usar uma faca para cortar o cordão umbilical… quase morreu com uma infecção, mas agora está bem.» A menina chama-se Sojud – o nome dado ao movimento de prostração durante a reza, no culto muçulmano. Foi a forma de agradecerem a Deus pela nova vida que ofereceu à família, no meio de tamanha mortandade.

Faraj Samouni só conseguiu regressar a casa 15 dias depois, quando a zona deixou de estar ocupada pelos tanques israelitas. «O corpo do meu pai ficou aqui, abandonado, este tempo todo», diz, apontando para o local exacto onde ele se encontrava. E é então que agarra num pedaço de terra escurecido e o cheira. Depois estende-o, perguntando: «Vês como cheira bem?» Os palestinianos acreditam que quando o sangue dos mortos ganha um odor adocicado, isso significa que se tornaram mártires. Foi nesse momento, e nesse momento apenas, que no rosto duro de Faraj se desenhou um sorriso.

O trauma das crianças

A história da família Samouni chocou os palestinianos pela dimensão da tragédia que a atingiu – nenhuma outra perdeu tantos membros, durante os 22 dias de guerra com Israel. Mas há dezenas de casos com quatro, cinco, seis mortos.

A família Deeb, do bairro de Jabalya, chora a morte de 11 familiares, de forma bem audível, assim que se cruza o seu portão azul, cravejado de balas. Uns primos, que acabam de chegar com um cartaz com as suas fotografias, honrando-os como mártires, ao lado da figura de Yasser Arafat, juram que ali ninguém tinha ligações com o Hamas.

As mulheres estavam a fazer pão, quando um tanque disparou contra a casa, arrancando metade da parede da sala onde se encontravam. Só Ahlam, 19 anos, estava numa divisão ao lado. Foi atingido por estilhaços mas nenhuma ferida é pior do que a dor de perder 11 dos 13 membros da sua família, de uma só vez.

Restava-lhe, apenas, Allah, a irmã de 17 anos, transportada para um hospital do Egipto, em estado muito crítico. Subitamente, a casa enche-se de gritos. As mulheres choram, inundam o bairro com as suas ondas de lamento. Um primo explica que acabam de receber um telefonema do Cairo – Allah não sobreviveu.

A casa de Ahlam Deeb fica a uma centena de metros da escola das Nações Unidas atingida pelos militares israelitas, onde morreram 48 pessoas. Os danos não são muito visíveis, no dia em que as aulas recomeçam, a 25 de Janeiro, depois de mais de um mês de férias forçadas. O espaço é invadido por miúdos aparentemente felizes, que se desfazem em gargalhadas com o espectáculo de um palhaço contratado pela Muslim Aid. «Temos de colocar pensamentos bons na cabeça deles, depois de dias tão sombrios», diz Maher Waha, 44 anos, psicólogo da organização islâmica, que teme as consequências destes dias de guerra nas gerações futuras. «Muitas crianças voltaram a fazer chichi na cama, têm pesadelos, não comem… é impossível saber mas haverá milhares de casos de stresse pós-traumático para acompanhar.»

O líder de Jabalya

Os soldados insistem que atacaram a escola da ONU, onde um milhar de civis procurara abrigo, respondendo a tiros que alguém disparava daquela área. E Abu Askar, líder do Hamas naquela região, não nega que os seus homens estavam na rua, a combater. «Três 'irmãos' meus morreram ao fundo da rua, com outras 12 pessoas», diz, de forma seca, sentado numa cadeira de rodas, ao lado da sua casa desfeita – a menos de 50 metros da escola de Fakoura.

Israel conhece-o bem e sabia onde ele morava. «Ligaram-me a dizer que tinha cinco minutos para sair. Depois, largaram aqui uma bomba.» Ele, que já perdera as pernas num combate com os israelitas – foi ferido pelo míssil disparado por um helicóptero, na fronteira norte do território, em 2006 –, mudou-se para uma casa ao lado. O ataque da aviação israelita foi, neste caso, de uma precisão espantosa. Todas as casas em redor estão intactas, se descontarmos os vidros partidos: a dele parece ter sido implodida.

Jabalya é o mais antigo campo de refugiados do mundo (existe desde 1948, quando nasceu o Estado de Israel). Foi, entretanto, transformado num bairro com casas toscas de cimento, com ruelas estreitas e desordenadas, por onde correm esgotos a céu aberto. É um terreno fértil para a revolta dos jovens. Aqui sobrevivem, em condições miseráveis e graças aos cupões de racionamento alimentar da ONU, mais de 160 mil pessoas.

Abu Askar pertence à geração que daqui lançou a primeira Intifada, a chamada «guerra das pedras», em 1987. E acredita que Jabalya continua a ser «a cabeça da revolução palestiniana», que tudo voltará a passar por aqui. Terá o Hamas capacidade de resposta, depois de um ataque desta magnitude? O homem ficou em silêncio durante uns segundos. Depois deu por terminada a entrevista, dizendo: «Aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes.»

Tréguas abaladas

Quando os F-16 israelitas cruzam os céus da Faixa de Gaza, a velocidades próximas da barreira do som, tudo treme à sua passagem. Os palestinianos acreditam que estes caças são «bombas supersónicas». O som é em tudo semelhante ao de uma gigantesca explosão e, por breves segundos, o mundo parece fugir debaixo dos pés.

Na segunda-feira, 26, voltaram a ouvir-se tiros, em várias partes do território. Em Gaza, são claramente disparos de Kalashnikov, sons metálicos, espaçados no tempo, a quem ninguém parece dar grande importância. Os tiroteios há muito que fazem parte da banda sonora das suas vidas.

Na região norte da Faixa de Gaza, junto da fronteira de Erez, ouvem-se mais disparos, desta vez em rajadas – provavelmente de militares israelitas contra os militantes palestinianos, que, nesse dia, terão lançado, segundo Telavive, oito rockets para o Sul do Estado hebraico – os primeiros desde o cessar-fogo decretado pelas partes, no domingo, 25.

Uma explosão junto do posto fronteiriço de Kissufim, a sul, deixa a população ainda mais apreensiva, na terça-feira. Um soldado israelita foi morto e outros três terão ficado feridos. Um agricultor palestiniano também morreu, segundo os médicos do Hospital Shifa, na cidade de Gaza.

O director do Serviço de Urgência do maior hospital da região – que, apesar do título, tem apenas 12 camas na sala de emergência, duas nos Cuidados Intensivos e nem um aparelho de ressonância magnética – descreve os dias em que recebeu mais de 5 mil feridos, sem meias palavras: «Isto foi uma catástrofe. O mundo tem de condenar Israel por estes crimes de guerra. Mataram 22 membros da minha equipa! Gente que ia em ambulâncias, para ajudar os feridos. Vi morrer aqui 437 crianças, 110 mulheres, 123 avós!»

Moawiya Abu Hasaneen grita estes números à porta do hospital, enquanto coordena o transporte de mais uma dezena de feridos para o Egipto. Depressa fica rodeado por dezenas de pessoas e todas querem acrescentar um ponto à história. O médico continua a desabafar a sua indignação: «Em cada rua da Palestina existe uma ou duas pessoas em cadeira de rodas. Não têm conta aqueles que tivemos de amputar, nas últimas semanas… E os que ficaram surdos? E os que ficaram cegos? E os que entraram aqui com queimaduras misteriosas, de grau 2 e 3, gravíssimas…» Várias pessoas apressam-se a mencionar a utilização do fósforo branco, proibido em zonas populacionais – e a Faixa de Gaza é uma das regiões mais densamente povoadas do planeta.

O calvário dos sobreviventes

Passando a recepção do Hospital Shifa, onde está afixado um enorme cartaz com o rosto do xeque Yassim, o líder do Hamas assassinado por Israel em 2004, é preciso furar pelas escadas apinhadas de gente para chegar ao quarto andar, onde está Nesreem El Qouq, uma menina de 8 anos ferida por disparos da marinha israelita na quinta-feira, 22 – em pleno cessar-fogo. «Ela estava a brincar com o irmão na praia, eram 7 da manhã, não havia ali mais ninguém», explica a mãe, enquanto afasta os cobertores da cama para mostrar os ferimentos. Tem uma perna ligada desde a anca aos dedos dos pés, foi submetida a uma cirurgia complicada mas os médicos estão confiantes de que ficará sem sequelas. «Sem sequelas físicas», corrige imediatamente uma enfermeira que ouvia a conversa a poucos metros.

Nesreem é uma das poucas crianças que ainda permanecem em Shifa. Como explica o enfermeiro Fadi Khodir, 22 anos, «os casos mais graves foram para hospitais na Bélgica». Há uma semana, chorou, quando teve de se despedir de uma menina de 3 anos, Samar, com a parte dorsal desfeita. «Ela não tinha costas quando aqui chegou, só um enorme buraco. Duas vértebras desapareceram, pura e simplesmente.» A menina esteve uma semana isolada no hospital, sem nenhum familiar por perto. Foi Fadi quem se ocupou dela, dia e noite. «Ir para casa era muito perigoso, de qualquer forma», diz, em jeito de brincadeira. A menina estava sozinha, porque a mãe também ficou ferida nos bombardeamentos e estava noutro hospital, inconsciente. «O pai queria procurá-las mas não conseguia sair à rua, os tanques disparavam contra quem ousasse abrir uma porta.»

No primeiro andar, por detrás de cada cortina azul, que confere alguma privacidade aos doentes ali internados, escondem-se dezenas de familiares, encavalitados em redor das camas dos seus. Nazmi Al Hyoubi aceita falar e os primos afastam-se para um canto, acrescentando pormenores no fim de cada frase sua.

Nazmi tem 22 anos, é estudante de Gestão. O seu braço direito está desfeito, a perna esquerda engessada e cravada de parafusos, o abdómen coberto pelas ligaduras que tentam confortar as suas feridas. Estava fechado em casa com outros 17 familiares, rezando para os tanques passarem depressa, quando o mundo desabou sobre a sua cabeça. «Lançaram um míssil de helicóptero e dois morteiros dos tanques», jura. Havia duas mulheres grávidas dentro de casa que também ficaram feridas, mas as ambulâncias só puderam acudir-lhes quatro horas depois, quando os israelitas abandonaram o local. «Pensei que ia morrer mas não me importava. Eu preferia ter morrido. Pelo menos tornava-me um mártir, ia para o paraíso, não tinha de ficar aqui, preso a esta vida terrível.»

A paz, o pão, a liberdade a sério

Os palestinianos consideram que todos os mortos em confrontos com os israelitas são mártires – e não apenas os suicidas em nome da resistência. Em todas as ruas de Gaza estão afixados cartazes com as suas fotografias, indicando a data e as circunstâncias da sua morte. O Hamas promove, empenhadamente, o ideal do martírio junto da juventude. Um CD de música à venda na cidade de Gaza tem, na capa, vários combatentes em acção. O título é elucidativo: «Centenas de noivas à tua espera.»

Os cartazes dos mártires encontram-se nos locais mais inesperados. Como no mercado central da cidade, decorando a banca de legumes de Mari Abu Arab, 39 anos. «Nenhum é da minha família mas são todos meus irmãos», explica, depois de ter contado como os tanques destruíram as suas culturas. «O que não foi espezinhado acabou queimado pelas bombas de fósforo.»

Mari calcula que serão precisos cinco anos para recuperar a sua quinta. Mas, para isso, seria preciso abrir terreno para a paz. «E o que é a paz que nos oferecem? É só pararem de despejar bombas em cima de nós? Não! Nós precisamos é das fronteiras abertas, que o cerco termine de vez. [as fronteiras de Gaza estão fechadas para o povo desde 2006]»

Já na escola da ONU onde se apinham 6 mil pessoas que ficaram sem casa no último mês, ouvira falar, com raiva, da noção que o mundo tem da paz de que os palestinianos precisam. Um homem queixava-se, dizendo que dormia com 78 pessoas numa sala com pouco mais de 20 metros quadrados, que não tomavam banho há três semanas e que a comida que a ONU distribuía era pouca, uma lata de atum para cada três ou quatro, deixando todos com fome. Um outro interrompeu a conversa, aos gritos, a ira a incendiar-lhe o olhar: «Não quero saber da comida, nós não somos animais que podem ser fechados num curral e a quem se atira umas sacas de farinha para apaziguar as consciências do mundo. Estou farto disto, eu quero é trabalhar para dar comida à minha família, não quero esmolas. Falam tanto de paz, nós precisamos é de liberdade!»


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Fonte da notícia: VISÃO

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