A grande crise em que o mundo parece ter mergulhado aprofunda-se todos os dias e atinge todos os continentes. É uma crise verdadeiramente global cujo remédio não surge claro, para ninguém.
Durante os anos de esperança que se viveram nas décadas "gloriosas", após a hecatombe da Segunda Guerra Mundial, os comunistas anunciavam a crise geral do capitalismo que não deixaria de aí vir, segundo as análises marxistas. Houve, de facto, pequenas crises, mas nada que se comparasse com a grande crise de 1929, que parecia ser a máxima referência maligna.
O capitalismo reformulou-se. Surgiram as sociedades de bem-estar, a segurança social para todos, o New Deal de Roosevelt, o trabalhismo inglês e as nacionalizações do pós-guerra e o socialismo democrático dos nórdicos, e a pouco e pouco, com nuances, do resto dos países europeus que pareciam assegurar a paz, o bem-estar e uma certa harmonia social. Tanto mais que se generalizaram a quase toda a Europa Ocidental, com as excepções negras - até à Revolução dos Cravos de 1974 - da Península Ibérica e da Grécia, as únicas três ditaduras fascistóides que sobreviveram na Europa dita Ocidental, à vitória dos Aliados.
O comunismo soviético consolidou-se, influenciou, com crises várias, as Repúblicas Populares do Leste Europeu, comunicou-se à China - que em breve se tornaria um comunismo rival da URSS -, à Coreia do Norte, ao Vietname e, com algumas outras pequenas experiências frustradas, a Cuba.
Contudo, o capitalismo ocidental manteve-se, próspero, superou as chamadas "crises do petróleo" e, entretanto, deu-se a magnífica surpresa, totalmente inesperada, da implosão pacífica do universo comunista, com a queda do Muro de Berlim, da Cortina de Ferro, da URSS, transformada em Confederação Russa, da integração das Repúblicas Populares na União Europeia e a grande transformação da China, com Deng Xiao Ping, que tentou conciliar o regime comunista de partido único com a economia de mercado e o pior dos capitalismos, o mais selvagem...
O chamado Ocidente - e, em especial, a América do Norte - exultaram com a implosão do universo comunista e cometeram o erro fatal de se considerar "donos do mundo", com Bush tentando marginalizar as Nações Unidas, procurando generalizar a chamada "democracia liberal", a globalização sem regras éticas, o "capitalismo de casino", o unilateralismo ao universo inteiro, caindo com a sua sobranceria de "vencedores" - sem remédio - nos atoleiros das guerras do Afeganistão e do Iraque, verdadeiros sorvedouros de recursos, e dando luz verde a Israel para atacar o Líbano e a Faixa de Gaza, dois outros erros imperdoáveis.
Veio a crise financeira e económica global - com os subprime, as roubalheiras em larguíssima escala, feitas secretamente em offshores, as falências escandalosas de bancos, companhias seguradoras, grandes empresas e de especuladores criminosos, como Madoff, que foi um exemplo maior. O neoliberalismo como sistema económico afundou-se, com o mesmo espanto público e rapidez com que se tinha afundado, quase 20 anos antes, o universo comunista. E, as pessoas perguntam-se, legítima e angustiosamente: e agora?
A crise - note-se - não foi uma novidade. Tinha sido anunciada por politólogos, economistas, sociólogos e alguns comentadores mais avisados. Mas ninguém ligou. Tanto que chegou com pés de lã e começou por ser um espanto - uma enorme surpresa - para os banqueiros, gestores, políticos, economistas, empresários e especuladores envolvidos.
Apesar dos múltiplos avisos, nunca lhes passou pela cabeça que lhes pudesse acontecer, ou melhor: que lhes caísse em cima da cabeça, com a brutalidade que tem acontecido...
E agora, repito? O Presidente Obama disse que "é preciso mudar o modelo económico". É evidente! Claro, o capitalismo financeiro especulativo faliu, como o neoliberalismo, que o tornou possível. Quanto a isso não há qualquer dúvida.
Embora as mentalidades de políticos, economistas, empresários e especuladores, na maior parte dos casos, ainda não tenham mudado. Por mais paradoxal que seja, as mesmas ideias e comportamentos persistem.
E, por isso, insisto: mas mudar, como? Respondo: buscando gente jovem, novos rostos de políticos, economistas e empresários, novas ideias, novos comportamentos. Sobretudo, com respeito pelos valores éticos, sociais e ambientais e habituando-se a uma estrita moralidade pública.
Passar do capitalismo para o socialismo? Como alguns sugerem, regressando às velhas utopias do século XX, em que tantas pessoas excelentes persistem em acreditar, neste início conturbado do século XXI?
Contudo, o socialismo totalitário - não o esqueçamos - faliu, tanto o de tipo soviético como o maoísta ou de Deng Xiao Ping, para não falar do fidelismo. Sem mercado não há cidadãos livres: há funcionários e escravos de um outro tipo, aprendemos isso com o colapso do universo comunista e, alguns de nós, em décadas antes, quando conhecemos a realidade dos goulags e os crimes de Estaline, através do relatório de Kruschev ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que fica então?
Uma economia de mercado, mas com regras éticas e políticas estritas. Estados de direito capazes de controlar os mercados e de assegurar sociedades de cidadãos livres, pluralistas e participantes, democracias não oligárquicas como era o caso, mas sociais, preocupadas com o bem-estar de todos, com uma justiça independente, acima dos media, e com a defesa do ambiente, indispensável à sobrevivência da humanidade e da biodiversidade.
Claro que isso, nas suas grandes linhas, é o que, durante décadas, se chamou na Europa social-democracia ou socialismo democrático. Ou, se quiserem, um capitalismo avançado ou progressista onde o superior valor são as pessoas e não o dinheiro ou a pura especulação financeira...
Não creio que, de momento, se possa inventar nada de melhor, para conseguirmos sair da crise e conceder à humanidade uns anos de paz e de bem-estar, sob a égide da lei e dos grandes valores universais.
Um modo de conciliar dois valores antinómicos da Grande Revolução Francesa: a liberdade com a igualdade possível e também com a fraternidade, dado que, como humanos, pertencemos todos à mesma casa comum.
Contudo, é importante, direi mesmo, indispensável, regulamentar a globalização, sem o que, também, não venceremos a crise. Ora se a globalização económica é um facto irreversível e global, como está à vista, importa que se estabeleça uma regularização política global, mediante a reforma das instituições financeiras internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional) e a sua integração nas Nações Unidas, reformuladas segundo os objectivos do milénio.
O que implica uma nova ordem mundial, com um esquema de governação mundial, que não seja um directório de países ricos, mas a consequência multilateral e democrática do mundo de hoje, com os países emergentes e blocos regionais que representam todos os continentes. Não vai ser fácil. Mas é o caminho que teremos de percorrer, abolindo as guerras e construindo um mundo melhor e mais humano.
Texto do Dr. Mário Soares