São milhares e percorrem quilómetros na beira da estrada, de noite e de dia, a engolir o pó levantado pela violência de condutores. Querem chegar a Fátima. Ao Santuário. À casa de Nossa Senhora. Entre as localidades não se vê um caixote do lixo e muito menos um polícia. O caminho é duro e longo. A luta contra o sol, a chuva ou contra o sono é terrível. Não se podem perder. Movem-se pela sua fé.
Só ontem e hoje, Fernando Pirata, 48 anos e líder de um grupo de 30, já leva quase 60 quilómetros no corpo e diz-nos que é sempre assim: "A fé e a ausência de segurança. De um lado, os caminhos de Deus; do outro, os do diabo". Fala quem sabe, afinal, este homem faz este mesmo percurso há 13 anos, desde que nessa altura decidiu acompanhar uma irmã ao Santuário.
Encontrou nessa primeira caminhada a sua missão: ajudar os peregrinos. "Continuem, continuem, que eu tenho que ir acompanhar a senhora Maria", diz-nos. A senhora Maria, de passo curto, fica sucessivamente para trás. Foi abandonada pelo anterior grupo e foi o de Fernando Pirata que a resgatou. Estava só e perdida.
Ao seu lado vão passando dezenas de pessoas de outros grupos. Fracos chinelos nos pés, cobertos com pensos higiénicos, um chapéu e o telemóvel para se falar à família. Todos dizem ao que vão. "Olhe menina, o meu nome é Laura e venho pagar uma promessa. A gente promete e tem que cumprir, não é?". Ao lado, passa uma senhora com um adesivo na boca, põe o dedo em riste para avisar que vai em silêncio.
As bolhas nos pés
Muitos já cambaleiam. As bolhas nos pés são a grande ameaça. Que o diga Cristina que só vai ver as suas tratadas depois do almoço, em Albergaria-a-Velha, para onde ainda faltam oito quilómetros. É Fernando Pirata quem a trata. Lava-lhe os pés, desinfecta-os, massaja-os, rebenta-lhe as bolhas, protegendo-as com compressas. Assim faz a todos os peregrinos do seu grupo e a todos os outros que precisam.
Ele próprio precisará mais tarde. Precisamente daqui a quatro dias. É que Fernando Pirata faz de pés descalços os últimos 20 quilómetros antes de chegar ao Santuário. O asfalto escaldará.
Andará três meses a tirar alcatrão dos pés, mas fá-lo. Não para pagar promessa, não para pedir nada, apenas porque sim, para caminhar, "para ter um tempo de silêncio". É uma missão que leva ao pormenor.
Regras para evitar acidentes
O seu grupo, por exemplo, caminha de noite e de manhã, para evitar o sol e as horas de maior trânsito. E depois há regras. A primeira é que ninguém pode, em circunstância alguma, atravessar a estrada. "Julgam que ainda podem correr, mas a verdade é que o corpo já não tem forças para isso. O risco de atropelamento é muito grande", explica.
Tudo isto faz e planeia para "recarregar baterias. Para ajudar os peregrinos e todos os que necessitam. Muitos são abandonados pelos grupos. Há poucas instituições de apoio. Não há polícia, não há segurança". "Para mim é uma missão. É uma forma de agradecer a vida", pormenoriza.
O mesmo pensa António Santos, de 34 anos, membro do grupo de Fernando Pirata. Garante que "não trocaria uma peregrinação a Fátima por nenhuma outra viagem do Mundo" e acrescenta que "enquanto se caminha, encontram-se as respostas para todas as perguntas que nos assaltam durante o ano". Vai a Fátima "só para caminhar, só para agradecer". E agradecer o quê? "Estar vivo".
Ao lado, a fumar um cigarrinho numa pausa merecida, após 23 quilómetros só nesta manhã, está Miguel Nora, de 34 anos e membro da mesma equipa. Garante que também não vai pedir nada, "apenas agradecer, já que em casa, na confusão dos dias, nem sempre dá para o fazer". "Este é um tempo só para pensar", reitera.
E são muitos os que na mesma pausa merecida - acompanhada de um almoço generosamente oferecido pelo senhor José e pela dona Maria da Purificação, da Padaria Central de Albergaria-a-Velha - revelam que não foram pedir nada à Nossa Senhora. Apenas agradecer. E sentir o ambiente "indescritível" do Santuário.
Mas são muitos também os que vão pagar promessa. Como dizia a senhora Laura que encontramos na estrada há uns oito quilómetros, "se a gente promete, a gente tem que cumprir". E assim prometeu Fernanda Mendes, de 59 anos. Bem disposta durante toda a caminhada deste dia, conta que a razão da sua ida a Fátima tem que ver com uma promessa que fez relativa à saúde de uma familiar muito querida. Mas ressalva: "Independentemente do que possa vir a acontecer, eu virei sempre". Há dois dias, antes da caminhada começar, Fernanda estava alegre, motivada. Dois dias depois continua com força. Custa-lhe apenas "a luta contra o sono".
Vencer os limites do corpo
O mesmo com a sua filha Sónia, de 34 anos, que chega a adormecer por breves instantes enquanto caminha. Mas não lhe passa pela cabeça deixar de continuar. "Eu era daquelas pessoas que pensava que jamais faria uma peregrinação. Até que um dia, por causa desta nossa familiar, pensei em vir. Andei meses a pensar nisso até que decidi. Agora sou incapaz de não vir", revela.
A peregrinação faz-se, afinal, de persistência. De resistência. Que o diga o senhor Luís, o mais crescido do grupo, que, com 72 anos e as pernas muito tortas, recusa ajuda para caminhar e sobe heroicamente a íngreme ladeira que vai dar às Diocesanas que os albergarão esta noite. A mesma força de espírito tem um outro membro do grupo que fica retirado enquanto os restantes vão almoçar. Está a pão e água. E hoje ainda só estamos em Albergaria-a-Velha, falta a Mealhada, Coimbra, Pombal e Fátima, que é como quem diz: faltam quatro dias.
Ao lado do grupo, num esforço hercúleo está José Paulo, o condutor da carrinha de apoio. Anda de carro, mas o seu esforço não é menor. Faz inúmeras viagens de trás para a frente para ver se está tudo bem, para verificar se algum peregrino teve um percalço. José Paulo carrega com as malas, com a água, com a fruta. E o mais difícil é não adormecer ao volante. " Estou desempregado e assim faço alguma coisa de útil", atira sem rodeios. Só nesta manhã, até à chegada a Albergaria-a-Velha, deve ter feito mais de 300 quilómetros.
Fernando Pirata não aceitaria falhas. Não fosse ele o homem dos pormenores, tais como guardar numa saquinha bordada todos os pedidos à Nossa Senhora, que vai recolhendo na beira da estrada. Para entregar depois na capela das Aparições, onde já entrará com os pés em sangue. Comove? Comove. Porquê isto? Porque sim. A fé é de cada um e, como traduz um peregrino, "não se vê, sente-se, mas não se explica".