Na Quinta República francesa ninguém viu algo assim. Pela primeira vez, um ex-presidente enfrenta um tribunal, acusado de abuso de confiança e desvio de fundos públicos. O arguido chama-se Jacques Chirac e terá criado empregos fictícios para os amigos, quando era presidente da câmara de Paris e antes de chegar ao Eliseu. Ainda muito popular em França, o antigo presidente arrisca-se a uma pena de prisão de dez anos. Em causa pode estar também o financiamento dos partidos.
Jacques Chirac, de 76 anos, dominou a política francesa durante mais de três décadas, tendo o sido o mais destacado dirigente do centro-direita nos anos 80 e 90. Eleito para a presidência em 1995, foi reeleito com grande facilidade para um segundo mandato, que terminou em 2007.
Este período no poder foi marcado por notícias que o envolviam em outros escândalos, nomeadamente o Clearstream e Angolagate (este último teve condenações que o estão a chamuscar ainda mais). Mas foi o caso das casas de Paris e dos empregos que o perseguiu todo o tempo. No entanto, a justiça não podia actuar, pois o presidente gozou de imunidade durante 12 anos.
Os supostos empregos fictícios, pagos pelo orçamento da câmara, eram na realidade pagamentos a pretensos "assessores" que nada faziam. Entre os nomes dos beneficiários há muitos sonantes, incluindo o filho do general de Gaulle, Jean de Gaulle. Todos eles eram próximos de Chirac. A justiça quer explicações sobre 21 casos, mas examinou 481, o que segundo a defesa permite desde já excluir a ideia de que estava montado um "sistema" de remunerações. A estratégia aparente será a de demonstrar que, no máximo, houve casos isolados.
Ontem, ao ser conhecida a decisão do juíza de instrução Xaviére Siméoni de enviar o caso para um tribunal, Chirac, que estava de férias em Marrocos, afirmou estar "sereno" e prometeu provar que cada um dos 21 empregos contestados pela justiça existiu de facto. Alguns juristas afirmam que os alegados crimes podem já ter prescrito, pois datam da sua passagem pela câmara parisiense (entre 1977 e 1995) e a prescrição seria em 1992.
Tirando a surpresa que representa um julgamento de um ex-presidente, as reacções foram mistas. Os partidos de esquerda manifestaram-se a favor do julgamento, enquanto o partido no poder (UMP, criado por Chirac) lamentava o assunto e a "prova dolorosa"que o estadista terá de suportar. A candidata socialista às presidenciais de 2007, Ségolène Royal, preferiu sublinhar que Chirac "deu muito ao país", mas a dirigente também lembrou que a justiça deve ser igual para todos.
O Presidente Nicolas Sarkozy não comentou o caso, recordando "o princípio da separação de poderes". A imprensa escreveu que o governo revelou sempre pouco interesse no avanço deste processo.
Uma das reacções mais antagónicas ao processo foi a do ex-primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, sempre muito próximo de Chirac. "Porque se procura ferir agora? Porque se procura atingir a função presidencial? Porquê encorajar aqueles que atacam a imagem da França?", questionou-se Raffarin. O facto é que, na Quinta República, nunca se viu nada assim: um ex-presidente que se arrisca a ser condenado.